O ensaísta americano Michael Pollan, é autor In Defense of Food (Em Defesa da Comida) a mais recente de suas obras sobre a indústria alimentar. Seu livro anterior, O Dilema do Onívoro, publicado no Brasil pela Editora Intrínseca, é outro best-seller sobre o tema. Pollan é radical em sua aversão aos exageros da ciência da nutrição. Ele diz que a humanidade está negativamente obcecada pelos benefícios da alimentação à saúde e que não deveríamos nos pautar unicamente pelos conselhos dos nutricionistas na hora de decidir o que comer. Pollan deu a seguinte entrevista ao repórter Thomaz Favaro de sua casa, na Califórnia:
Veja – Por que é cada vez mais complicado decidir o que almoçar?
Pollan – Atualmente, os alimentos são vendidos apenas com base em seus benefícios para a saúde: um é capaz de reduzir seu colesterol, outro tem muitas fibras. Os nutrientes tornaram-se mais importantes que a comida em si. O alimento é apenas um intermediário na entrega destas substâncias. Como os nutrientes são invisíveis para todos, exceto para o cientista e seu microscópio, escolher o que comer tornou-se uma decisão para profissionais, e não para amadores. Tem-se a impressão de que é necessário ter um diploma de bioquímica para tal escolha, o que não é correto. Além disso, as mensagens científicas com relação à comida são muito confusas. Há muita divergência entre nutricionistas sobre o que é ou não saudável.
Veja – O senhor afirma que estamos vivendo a “era do nutricionismo”. O que quer dizer com isso?
Pollan – Nutricionismo é a atual ideologia em torno da comida. O nutricionismo parte de alguns pressupostos, muitos dos quais nós compartilhamos sem perceber. Acreditamos, por exemplo, na possibilidade de dividir o mundo em nutrientes bons e ruins. Os ruins precisam ser removidos da comida, enquanto os bons, quanto mais, melhor. Atualmente o bom é o ômega-3 e o ruim é a gordura trans, mas isto muda constantemente ao longo da história. Cem anos atrás, as proteínas eram os nutrientes ruins, que deveriam ser substituídos por carboidratos. Outra premissa é que comemos para manter a saúde. Alimentamo-nos para melhorar ou piorar nossa saúde, e apenas isto. Na verdade, comemos pelas mais diversas razões: por prazer, para socializar com os amigos, para participar de rituais familiares e até para demonstrar nossa identidade cultural e religiosa. A saúde é só uma das razões, e por isso não pode se tornar nosso único parâmetro de escolha dos alimentos.
Veja – Há muitos alimentos que, como o ovo, eram considerados vilões da saúde e hoje foram reabilitados pela ciência. Por que é tão difícil encontrar um consenso entre nutricionistas?
Pollan – Os nutricionistas têm uma tarefa muito difícil. É muito complicado entender o que se passa no fundo da alma de uma cenoura ou de um ovo. Estas comidas são mais do que a soma de seus nutrientes, são verdadeiros sistemas com relações complexas entre si. Quando se isola um nutriente da comida para ver como funciona, ele não se comporta da mesma maneira que dentro do alimento. Eis um exemplo: o betacaroteno, nutriente presente na cenoura, é um antioxidante que se converte em vitamina A. Quando extraído da cenoura e ingerido em forma de pílula, não funciona. Também sabemos pouco sobre o outro lado da cadeia alimentar — o corpo humano. Ainda não se conhece muitos aspectos da digestão humana, como funciona exatamente nosso metabolismo ou como o corpo reage a diferentes açúcares. A nutrição é uma ciência nova e imperfeita, e por isto não deveríamos nos apoiar unicamente nela para escolher nossos alimentos. A nutrição está na mesma posição que a cirurgia no século XVII: é uma ciência jovem e promissora, mas você não quer ser sua cobaia.
Veja – Quais as dificuldades dos estudos de nutrição atuais?
Pollan – É muito difícil estudar as propriedades dos nutrientes dentro de um contexto. Não comemos apenas nutrientes, fazemos refeições completas. Comer tomate com azeite é diferente de comê-lo sozinho, pois o azeite aumenta a quantidade de antioxidantes do tomate que o organismo é capaz de absorver. Além da combinação de alimentos, é preciso levar em conta a quantidade de exercício que uma pessoa pratica, seu estilo de vida, sua cultura. São estudos muito complexos. Cortadores de cana em Cuba comem 6.000 calorias por dia, a maior parte puro açúcar. Isso faria de qualquer um de nós diabético, mas eles não ficam doentes. Não ficam sequer gordos, pois estão queimando todo este açúcar no trabalho. Outro problema ao estudar a alimentação de populações é que é difícil conseguir respostas honestas dos entrevistados. Se você der um questionário para uma pessoa escrever o que ela comeu nos últimos três meses, ela não vai se lembrar de tudo e vai mentir. As pessoas se esquecem do que comeram.
Veja – Nós possuímos instintos naturais de seleção dos alimentos?
Pollan – Sim, há testes que comprovam isso. Foram entregues a crianças dez tipos diferentes de alimentos integrais, in natura. Algumas vezes elas comiam apenas um tipo de alimento o dia todo, mas ao longo de uma semana, estas crianças, usando apenas seus instintos naturais, construíram uma dieta muito saudável. É uma prova de que em algum lugar, perdido no meio deste turbilhão de informações sobre o que devemos comer, possuímos instintos naturais para escolher nossos alimentos. Usamos o olfato para saber se a comida está estragada. Comidas muito amargas também não nos apetecem, justamente porque a maioria das toxinas têm esse sabor. A maioria de nós percebe que comer fast-food em grandes quantidades nos faz sentir mal depois. Nós temos instintos, mas está difícil confiar neles, sobretudo depois de tanta exposição ao sal e açúcar.
Veja – Por quê?
Pollan – Atualmente é muito fácil manipulá-los. Biologicamente, estamos condicionados a açúcar e gordura. Quando se coletava alimentos diretamente da natureza, isto não era um problema. Há poucas fontes de doces disponíveis além de mel e frutas maduras. No passado, só era possível conseguir gordura animal depois de uma boa caçada, o que não acontecia todo dia. Mas com a agricultura e a pecuária modernas, dar açúcar e gordura para as pessoas tornou-se fácil demais. Os alimentos processados e fast-foods contêm níveis altíssimos de açúcar, gordura e sal. Os cientistas da comida também podem criar substâncias que mentem para o nosso corpo, como adoçantes e gorduras artificiais. A manipulação dos alimentos torna mais difícil confiar em nossos instintos.
Veja – Há 50 anos, não havia tanta informação detalhada a respeito de nossas comidas, mas também não tínhamos tantos problemas de saúde relacionados à alimentação. Estamos mais inteligentes ou mais burros em relação à nutrição?
Pollan – Um pouco de cada. Um dos principais guias sobre o que nós deveríamos comer é a cultura, que na verdade é só uma palavra rebuscada para referir-se a nossas mães. É através das mães que a sabedoria da comida é transmitida através das gerações. Nós atualmente rejeitamos a culinária em nome desta dieta pseudocientífica, e passamos a ouvir cientistas e vendedores de comida ao invés de nossas mães. Ignorar nossa cultura alimentar é uma burrice. Quando eu era pequeno, cientistas e o governo americano diziam que manteiga era ruim para a saúde e margarina fazia bem, por ser uma gordura vegetal. Minha mãe, a contragosto, resolveu ouvir a sabedoria deles e nos deu margarina. Ela dizia que eles estavam errados, mas nós dávamos risada. Hoje a ciência provou que ela estava certa. Quando se interpreta a cultura como uma história da carochinha, corre-se o risco de perder conhecimentos importantes. Porém nem tudo foi perdido: nós realmente aprendemos algo com os estudos acadêmicos. A ciência da nutrição não é uma perda de tempo. Há muitas coisas que sabemos sobre composição dos alimentos e sobre metabolismo que nós não conhecíamos há cinqüenta anos. Muito desse aprendizado está justamente comprovando que a sabedoria popular estava certa.
Veja – De qual culinária estamos falando? Japonesa, francesa, italiana, brasileira?
Pollan – Não importa. Não existe algo como uma culinária típica maléfica: ela não teria durado até hoje se não mantivesse as pessoas vivas e saudáveis. Qualquer comida tradicional é melhor que a moderna dieta ocidental. As pessoas podem escolher de acordo com a sua preferência. Mas atenção: ir a um restaurante japonês ou francês não é garantia de que você estará comendo a comida tradicional do país. Em muitos lugares, serve-se a comida dos banquetes, que é diferente do que aquela nacionalidade come cotidianamente. Muito do que achamos que é comida chinesa são pratos servidos em ocasiões especiais, pois são repletos de carne.
Veja – Há cada vez mais produtos disponíveis nas prateleiras dos supermercados. Temos realmente mais tipos de comida disponíveis?
Pollan – Sim e não. É fato que atualmente podemos encontrar diferentes frutas e vegetais do mundo todo no supermercado, muito mais do que encontraríamos cinqüenta anos atrás. Por outro lado, ao analisar as fontes de calorias, nota-se que a nossa dieta está menos diversificada. Mais de dois terços das calorias consumidas diariamente vêm de apenas quatro vegetais: milho, soja, trigo e arroz. Um século atrás, havia maior diversidade. Esta aparente diversidade no supermercado obscurece a realidade de que a diversidade de nossa dieta vem encolhendo.
Veja – A comida recebe cada vez mais poderes de definição sobre nosso humor e caráter. Estamos colocando propriedades mágicas nos alimentos?
Pollan – A comida tem, de fato, uma dimensão espiritual. É uma maneira de conectar-se com o mundo, com as outras espécies com as quais convivemos e também com outros seres humanos. Uma comunhão acontece toda vez que se faz uma refeição com a família ou amigos. Mas há uma obsessão em obter os nutrientes corretos, e uma percepção errônea de que basta comer a comida correta que tudo estará bem com você e o mundo todo. Não é tão simples assim. Precisamos voltar a nos preocupar com toda a cadeia produtiva dos alimentos e não ficarmos obcecados com este ou aquele nutriente. A manutenção da saúde deve ser apenas uma conseqüência, e não o objetivo de comer bem. É claro que se você está doente, a comida pode ser um excelente remédio. Mudanças na dieta podem ter um enorme efeito em sua saúde. Mas a maioria de nós não está doente, então não precisamos nos preocupar tanto com isso. Há um distúrbio alimentar chamado ortorexia, que é a obsessão por alimentar-se de maneira saudável. Acho que muitas pessoas atualmente sofrem com este mal.
Veja – Como a industrialização dos alimentos mudou nossa relação com a comida?
Pollan – Nós não sabemos mais de onde vem nossa comida. A cadeia é tão grande que muita gente acha que a comida vem do supermercado. Muitas crianças hoje não entendem que a cenoura é uma raiz. Elas se perguntam de que parte da planta são estes pedaços laranjas dentro de um saco plástico. A indústria alimentar nos desconectou do fato de que dependemos destas outras espécies, com as quais compartilhamos o planeta, para sobreviver.
Veja – Quais são as conseqüências desta desconexão?
Pollan – Nós entregamos a preparação dos alimentos para empresas de grande escala. Isto pode ser conveniente, pode nos ajudar a conseguir uma hora a mais na frente da televisão ou da internet, mas estas empresas não cozinham bem. Elas usam muito sal, gordura e açúcar. A comida se torna altamente calórica e não tão nutritiva. A conseqüência é que nos tornamos mais vulneráveis. Somos vítimas mais fáceis das manipulações dos alimentos fast-food e das propagandas de dietas milagrosas. É uma das razões pela qual nós temos tantos problemas de saúde relacionados à alimentação. Não confiamos mais em nossas tradições, não sabemos mais como cozinhar. Precisamos tomar de volta a decisão sobre nossas escolhas alimentares e sobre a preparação das refeições.
http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/300408/especial_entrevista.html
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