Estariam os brasileiros, então, intoxicando-se perigosamente cada vez que levam o garfo à boca e arriscando uma doença grave no futuro? Definitivamente, não: Quando se esmiúça o relatório, vê-se que muito do receio que ele provocou é exagerado e infundado. Para explicar porque é assim, VEJA conversou com 8 toxicologistas e engenheiros agrônomos que atuam em centros de referências no país.
Antes de mais nada: Porque os agricultores se valem de produtos que, em seu próprio nome, já trazem o sufixo tóxico?
A palavra entre “Agrotóxico” é imprecisa e algo carregado ao julgamento de um valor – resquício do tempo, há muito tempo deixado para trás, em que estas substâncias eram colocadas no mercado sem pesquisa suficiente sobre suas propriedades e seus efeitos, e usadas de forma indiscriminada. O nome certo é “defensivo agrícola”, uma vez que esses produtos servem não para intoxicar a lavoura ou o produtor, mas sim para defender a plantação de pragas, insetos e parasitas e evitar que ela se perca.
Como foi feito o estudo da Anvisa?
O programa de análise de resíduo de agrotóxico em alimento avaliou 2.488 amostras de 18 tipos de alimentos – abacaxi, alface, arroz, batata, beterraba, cebola, cenoura, couve, feijão, laranja, maça, mamão, morango, pepino, pimentão, repolho, tomate. A escolha das variedades obedeceu à combinação de três parâmetros: os dados de consumo do IBGE (que levanta os itens mais comuns na mesa dos brasileiros), a disponibilidade nos supermercados e as culturas em que o uso de defensivos é costumeiramente intensivo, por serem mais numeráveis a pragas ou pestes. Os vegetais foram coletados e analisados em 2010.
Como se definiu o que é um alimento contaminado?
A classificação seguiu dois critérios: resíduo, no alimento, de defensivo acima do limite permitido e detecção do uso de defensivo não autorizado para aquela determinada cultura. Das 2488 amostras, 694 foram consideradas irregulares.
Quantos alimentos apresentaram resíduos de defensivos em excesso?
Apenas 3,6% dos produtos avaliados revelaram teor de agrotóxico acima do limite máximo de resíduo (LMR), índice que determina o consumo sem riscos à saúde. Ou seja, das 2488 amostras, 89 foram reprovadas. Isso pode acontecer por dois motivos: Porque o agricultor aplicou na lavoura uma dose acima da indicada ou porque desrespeitou o chamado período de carência. – O intervalo mínimo entre o uso do pesticida e a colheita, tempo em que o defensivo se degrada e perde sua toxicidade para os seres humanos.
Quão acima do limite de resíduos estavam esses alimentos?
Em geral, muito pouco. Segundo o toxicologista Ângelo Trapé, professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), esse é o quesito em que este receio é quase sempre injustificado, já que as margens de segurança são altíssimas. Para definir o nível seguro de resíduos de defensivos agrícolas que o ser humano pode ingerir diariamente, os cientistas primeiro realizam estudos em animais. O valor que não apresenta riscos para eles é então dividido por 100 – e assim se chega ao limite máximo aceitável para homem. Ou seja, o nível de resíduo detectado das amostras coletadas teria de estar 1000% acima do permitido para que se começasse a pensar em risco real. E nenhum caso desta monta foi verificado.
Em 24,3% das amostras, as análises detectaram presença de defensivos não autorizados. Eles eram, então, ilegais?
Não, eles eram comercializados legalmente no país. O que acontece é que cada produto deve informar, no rótulo o tipo de alimento ao qual destina. “para registrar um produto, o fabricante gasta milhões de dólares. E, mesmo quando a marca já está no mercado, incluir uma nova cultura no rótulo, custa entre 35 000 e 40 000 dólares”, explica Luís Rangel, coordenador-geral de agrotóxicos do Ministério da Agricultura. Resultado: Como o processo é oneroso, as empresas preferem investir em defensivos que serão vendidos aos grandes produtores, como os dos setores de algodão, soja e milho, em detrimento daqueles destinados às culturas pequenas, como as hortaliças. “Assim, quando não há defensivos registrados para eliminar pragas que atacam uma cultura pequena, o produtor se vê obrigado a recorrer ao defensivo não autorizado, mas que traz o princípio ativo do qual eles necessitam”, explica Celso Omoto, professor da Faculdade de Engenharia Agronômica da Univesidade de São Paulo em Piracicaba.
O uso de defensivo não autorizado é prejudicial à saúde?
Não necessariamente. As pesquisas mostram que um defensivo não oferece mais ou menos riscos de saúde se aplicado neste ou naquele alimento. Ou seja, o produto x, indicado para tomate, não ficará mais tóxico, sendo usado no pimentão. “O problema está na soma: resíduos de um mesmo agrotóxico em vários dos alimentos que constam na dieta de uma pessoa podem vir a extrapolar seu limite máximo”, diz Luiz Claudio Meirelles, gerente geral de toxicologia da Anvisa. Mas a situação não é alarmante. “Como a margem de segurança para o cálculo do LMR é alta, é muito provável que o consumo desses alimentos não ofereça nenhuma implicação à saúde” diz o médico patologista João Lauro Camargo, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu.
Os alimentos que lideram o ranking da Anvisa – pimentão, morango e pepino – representam riscos à saúde?
De forma alguma. Isso vale para os dezoito alimentos avaliados. “Como os resíduos apresentados estão dentro de níveis seguros – quando houve excesso, ele era irrisório -, não há motivo para preocupação em termos de saúde pública” explica Ângelo Trapé da Unicamp.
É possível remover resíduos de defensivos nos vegetais?
Não, pois o defensivo penetra na polpa do alimento ou circula pela seiva da planta. Nas últimas semanas, muitas “receitas” para remover defensivos circulam por ai – inclusive em telejornais de grande alcance – como lavar alimentos com água e sabão ou mergulhar em uma solução de hipoclorito de sódio, que nada mais é do que água sanitária diluída. Pura balela. “A lavagem com qualquer uma destas substâncias removem micróbios e coliformes fecais, mas não resíduos químicos”, explica o engenheiro agrônomo José Otávio Menten, professor da Universidade de São Paulo, em Piracicaba. A fruta e a verdura ficam limpinhas, o que é ótimo. Mas o que houver de resíduo químico nelas continuará ali.
Descascar o alimento, então não adianta?
Descascar o alimento ou retirar as folhas externas do maço de alface, por exemplo, elimina apenas os resíduos presentes nestas partes do vegetal. O que está nas outras partes permanece. Além disso, as cascas de muitos alimentos são altamente nutritivas, e descartá-las pode ser um desperdício.
Algumas hortaliças, frutas e legumes tendem a absorver mais defensivos?
Não. O que determina se algum resíduo permanecerá no alimento é o manejo do produto na lavoura: a quantidade empregada e o período de carência indicado para aquela substância em particular. Se tudo for feito conforme a bula, entre o dia da aplicação do defensivo e o da colheita, a dose correta sofrerá degradação natural com a ação dos raios solares, da chuva e dos microorganismos.
Ingerir resíduos de defensivos provoca doenças ou malefícios?
Não existe comprovação científica de que o consumo a longo prazo de resíduo e pesticida nos alimentos provoque problemas graves em seres humanos. “A associação entre o uso de defensivos e a ocorrência de câncer, malformação fetal ou distúrbios neurológicos só foi demonstrada em animais expostos as concentrações altíssimas desses produtos”, diz o toxicologista Flávio Zambrone, presidente do instituto brasileiro de toxicologia. Também não há caso de intoxicação provocada pela ingestão de um alimento contaminado.
Os defensivos oferecem risco à saúde dos agricultores?
Apenas quando eles não respeitam as regras de uso. “Os principais efeitos adversos são problemas gastrointestinais e demartologicos provocados por exposição a doses elevadas”, diz Ângelo Trapé. Os equipamentos de segurança e as preocupações recomendadas pelos fabricantes reduzem drasticamente os riscos de contaminação.
“Como o Brasil é um dos países mais rigorosos no processo de registro, os produtos disponíveis no mercado são seguros.”, diz a Engenheira Agrônoma Rumy Goto da Unesp.
É possível reduzir o uso de defensivos no campo, sem prejudicar a produtividade?
Sim, com programas educacionais que ensinem o agricultor a escolher o produto certo, aplicar a dose correta e respeitar o período de carência para a colheita segura. O produtor pode, por exemplo, optar por agrotóxicos seletivos, que agem na praga sem extirpar seus inimigos naturais. Assim o inseticida que mata o pulgão (praga) não elimina a joaninha (que se alimenta de pulgões e, assim, promove um controle natural da praga), o que reduz a necessidade de mais defensivos. Outra solução envolve manejos agrícolas como a rotação de cultura para quebrar o ciclo de vida da praga. “O produtor deve entender que existem diversas ferramentas para controlar pragas. Sem esse conhecimento, ele acaba optando pelo produto mais barato ou não autorizado para aquela cultura” diz o engenheiro agrônomo Celso Omoto da USP.
Existe alguma maneira de o consumidor se certificar da proveniência das frutas, dos legumes e das verduras que vai pôr à mesa?
Por enquanto não. Mas o Ministério da Agricultura pretende criar um cadastro de produtores multados por uso indiscriminado de defensivos agrícolas e disponibilizá-los para consulta pública em seu site. Essa medida poderá incentivar os bons produtores a identificar seus produtos com um selo. Como já é possível encontrar nas gôndolas do supermercado.
Fonte:Guia Veja – Matéria: “A verdade sobre os agrotóxicos?”
Revista Veja, edição de 4 de janeiro de 2012, páginas 84 a 88